sábado, 31 de janeiro de 2009



Calcinhas brancas encardem rápido, tornam-se as mais poupadas tanto pela aparência que vão adquirindo quanto pela necessidade de tê-las sempre para algum momento surpresa. Pele também encarde. Alguns dias atrás, esturriquei as pernocas na praia depois de muito tempo de mofo no piche urbanóide. Dois dias de febre vermelho intenso sem encostar, mais quatro de pura exuberância dourada apenas nas pernocas, aliás, um corpitcho google maps várias cores rendendo desfiles e olhadas indiscretas. Quase uma semana após minha tentativa garota de praia, a coceira! Uma noite fritando e coçando. De pernocas saradas bronzeadas à descascadas e cheias de hematomas de unhas grandes que se fortaleceram e cresceram depois do exercício frenético de coçassão. O desconhecido poderia até julgar ser uma suja pulguenta que encardia. Agora ontem ouço a frase mais dramática dos últimos tempos: "Estou me sentindo encardida". Ser encardida, estar encardida, será que haverá nesse estado algum pacto com o encardido? Putz, me chocou! Um nível de depressão master deve ser próximo dessa sensação de estar encardida assim como:
Encardia a pele de vaca no curtume de algum lugar passivo de brisa e frescor da chuva.
Depois daquela rua atrás do viaduto, moribundos encardidos ciscavam mimetizando os pombos de uma praça vizinha.
Encardia as noites com seu bafo pestilento, alvorançando os arredores.
A alma encardida lameando os pensamentos ciumentos de acordes inúteis.
Acabou encardi. MC²
Que se encardiu; que adquiriu cor acinzentada ou amarelada por haver sido mal lavado, ou pela velhice:
roupa encardida;
papel encardido.
2.P. ext. Diz-se da pele que, por doença, velhice ou falta de asseio, perdeu o brilho, o aspecto saudável.
3.Sujo, imundo:
casa encardida.
4.Bras. Carregado, ameaçador:


quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

FRASES ORBITAL

"A diversão deve levar a algum objetivo." (I2XM)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Um prato de porcelana branco raso, com ervilhas verdes atômicas, alguns tomates cereja boca louca e milho playmobil.

Qual o tamanho da sua fome?
Qual o seu peso encefálico?
Quantas pipocas já defecou hoje?
Quantos arames se constrói uma pilastra?
Você sabe sobre as mudanças gramaticais na língua portuguesa?
Você tolera puxas sacos?
É aspirante, orgânico ou enlatado?

Um prato esmaltado branco descascado fundo com arroz pontas agulha, angu caroço de pêssego e farinha compacta filantropia.

Qual o valor do seu trabalho?

Quantos filhos tem?
Joga na Megasena ou arrisca o Jogo do Bicho?
Vai pra Guarapari ou Praia Grande nas férias?
É hipertenso ou diabético?
Pra qual time torce?

Mãos servindo risoto à carbornara quentinho de mijo de um lixo de poste plasticuloíde empoeirado na esquina da Aurora.

É existêncialista ou materialista?
MC²












domingo, 4 de janeiro de 2009

Aos que vão nascer...

É verdade, vivo em tempo de trevas!
É insensata toda a palavra ingénua. Uma testa lisa
Revela insensibilidade. Os que riem
Riem porque ainda não receberam
A terrível notícia.

Que tempos são estes, em que
Uma conversa sobre árvores é quase um crime
Porque traz em si um silêncio sobre tanta monstruosidade?
Aquele ali, tranquilo a atravessar a rua,
Não estará já disponível para os amigos
Em apuros?

É verdade: ainda ganho o meu sustento.
Mas acreditem: é puro acaso. Nada
Do que eu faço me dá o direito de comer bem.
Por acaso fui poupado (Quando a sorte me faltar, estou perdido)
Dizem-me: Come e bebe! Agradece por teres o que tens!
Mas como posso eu comer e beber quando roubo ao faminto o que como e
O meu copo de água falta a quem morre de sede? E apesar disso eu como e bebo.
(...)
É verdade, vivo em tempo de trevas!

Cheguei às cidades nos tempos da desordem. Quando aí grassava a fome
Vim viver com os homens nos tempos da revolta. E com eles me revoltei.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.
(...)

No meu tempo as ruas iam dar ao pântano.
A língua traiu-me ao carniceiro.
Pouco podia fazer.
Mas os senhores do mundo
Sem mim estavam mais seguros, esperava eu.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.

As forças eram poucas. A meta estava muito longe
Claramente visível, mas nem por isso ao meu alcance.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.

Vós, que surgireis do dilúvio
Em que nós nos afundámos
Quando falardes das nossas fraquezas
Lembrai-vos
Também do tempo de trevas
A que escapastes.

Pois nós (...)
Atravessámos as lutas de classe, desesperados
Ao ver só injustiça e não revolta.

E afinal sabemos:
Também o ódio contra a baixeza
Desfigura as feições.
Também a cólera contra a injustiça
Torna a voz rouca. Ah, nós
Que queríamos desbravar o terreno para a amabilidade
Não soubemos afinal ser amáveis.

Mas vós, quando chegar a hora
De o homem ajudar o homem
Lembrai-vos de nós
Com indulgência.

Bertolt Brecht


José



E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio
e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?


O medo








Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.

Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.

Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.

Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.

Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno,
De nós, de vós: e de tudo.
Estou com medo da honra.

Assim nos criam burgueses,
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?

Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.

Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.

E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.

O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.

Tenhamos o maior pavor,
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.

Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,

eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.