CONTA GOTAS
Faz tempo que não chove como hoje. A imobiliária não veio consertar a infiltração. Já posso ver uma gotinha querendo brotar do teto para seguir seu curso parabólico e se dividir em tocs tocs pelo chão. Tá frio. Cansada.
Caiu ! (observa lentamente) não vai ser a primeira certamente. Estava só
esperando o show começar. Desse jeito não durmo hoje.
Pausa
A chuva começa engrossar , a casa é velha e tem madeira , o som é forte
Assustada , um tanto paralisada. Aos poucos toma coragem e olha pela porta.
São coisas da sua cabeça!... Não
tem ninguém aqui, só você!
(medo,
encolhendo-se em um canto, tempo)
Porque não tem ninguém? Nunca
senti isso antes. Se ao menos pudesse
falar com alguém?
(tenta ligar mas a linhas estão congestionadas, As gotas começam a
tomar força dentro da casa)
Calma , vai passar . Daqui a
pouco passa. Eu não entendo . Respira! Respira!
A chuva sempre foi um calmante,
adorava dormir e sentir o cheiro de terra molhada. Não entendo o que aconteceu.
Já não me encanta mais . E quando no céu se apronta um temporal não quero voltar pra casa.
Poderia ter feito hora extra no trabalho hoje. É como se,de repente, tudo
inundasse. Me dá enjôo. Tô enjoada.
(gotas
caem simultaneamente e ela tenta secá-las com um pano)
Maldita imobiliária, isso é
maldade. Essa casa deve ter alguma energia estranha, pode ser olho gordo. Sei lá algum encosto. Vindo daquela bruxa
advogada dona da imobiliária eu posso esperar tudo. Ela abusou da minha
paciência, me pedindo documentos que quase não existiam para alugar essa casa.
Quase adoeci por conta disso, virou uma guerra para ultrapassar os limites.
Consegui . Mas agora estou aqui, as
gotas não param de cair . Essa chuva é pra noite toda. Será que aguento.
Tá frio.
Vou fingir que não está acontecendo
nada. Hoje é um dia muito quente, verão.
As pessoas estão nas ruas, nos botecos se divertindo. Qualquer coisa eu
grito! Pronto eu grito.
( Medo vai crescendo e emudece. Dorme)
Acorda mais tarde com o barulho de muitas gotas caindo. Levanta-se
desesperada. Traz baldes e panos para impedir o barulho. Começa a enxugar
desesperada.
Reza , reza (para Sta. Bárbara) para esquecer seus pensamentos . Lembra
de uma canção que sua mãe lhe ensinara. Canta cada vez mais alto para não ouvir
seus pensamentos. No seu desespero, acha que está louca e que este é só o
começo sem volta. Pensa na morte.
Mas sou tão jovem. Já não sou tão
jovem. Ainda falta tempo. O que eu fiz esse tempo todo? Melhor morrer assim do
que adoecer e sofrer. Tenho pavor de adoecer. Não, isso não vai acontecer.
Melhor dormir de novo e acordar morta. Ninguém vai se lembrar de mim. Ninguém!
Quem eu fui ? Ahhh eu me diverti. Mas se eu tivesse tido um filho pelo menos.
Dois, talvez, e tivesse amado, agora teria alguém pra cuidar de mim. Eu quero
que alguém cuide de mm. Cansei da solidão. Cansei de ser depósito de um prazer esquecido. Uma
fuga. Não quero fugir mais. Onde foi que eu enlouqueci e não percebi? Quem
sobrou dessa batalha toda?
(tenta ligar mais uma vez,
telefone ocupado)
Atende! Atende! Atente! Grita!
(está quase toda molhada, o espaço alagado. Há água por todos os cantos
compondo quase uma piscina. Olha a água, vê esperança! Esquece o frio, brinca
com a água como uma criança)
Sede! (bebe a água , acalma-se um
pouco)
Sede!
Sede!
Surge sua criança, inconsequente, impulsiva. Brinca, brinca , brinca...e
esquece. MC²
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