terça-feira, 29 de maio de 2012


CONTA GOTAS

Faz tempo que não chove como hoje. A imobiliária não veio consertar  a infiltração. Já posso ver uma gotinha querendo brotar do teto para seguir seu curso parabólico e se dividir em tocs tocs pelo chão. Tá frio.  Cansada.
Caiu ! (observa lentamente) não vai ser a primeira certamente. Estava só esperando o show começar. Desse jeito não durmo hoje. 

Pausa 
A chuva começa engrossar , a casa é velha e tem madeira , o som é forte
Assustada , um tanto paralisada. Aos poucos toma coragem e  olha pela porta.

São coisas da sua cabeça!... Não tem ninguém aqui, só você! 

(medo, encolhendo-se em um canto, tempo)

Porque não tem ninguém? Nunca senti  isso antes. Se ao menos pudesse falar com alguém?

(tenta ligar mas a linhas estão congestionadas, As gotas começam a tomar força dentro  da casa)

Calma , vai passar . Daqui a pouco passa. Eu não entendo . Respira! Respira!
A chuva sempre foi um calmante, adorava dormir e sentir o cheiro de terra molhada. Não entendo o que aconteceu. Já não me encanta mais . E quando no céu se apronta  um temporal não quero voltar pra casa. Poderia ter feito hora extra no trabalho hoje. É como se,de repente, tudo inundasse. Me dá enjôo. Tô enjoada. 

(gotas caem simultaneamente e ela tenta secá-las com um pano)

Maldita imobiliária, isso é maldade. Essa casa deve ter alguma energia estranha, pode ser olho gordo.  Sei lá algum encosto. Vindo daquela bruxa advogada dona da imobiliária eu posso esperar tudo. Ela abusou da minha paciência, me pedindo documentos que quase não existiam para alugar essa casa. Quase adoeci por conta disso, virou uma guerra para ultrapassar os limites. Consegui . Mas agora estou aqui, as  gotas não param de cair . Essa chuva é pra noite toda. Será que aguento. Tá frio.
Vou fingir que não está acontecendo nada. Hoje é um dia muito quente, verão.  As pessoas estão nas ruas, nos botecos se divertindo. Qualquer coisa eu grito! Pronto eu grito.

( Medo vai crescendo e emudece. Dorme)
Acorda mais tarde com o barulho de muitas gotas caindo. Levanta-se desesperada. Traz baldes e panos para impedir o barulho. Começa a enxugar desesperada.
Reza , reza (para Sta. Bárbara) para esquecer seus pensamentos . Lembra de uma canção que sua mãe lhe ensinara. Canta cada vez mais alto para não ouvir seus pensamentos. No seu desespero, acha que está louca e que este é só o começo sem volta. Pensa na morte.

Mas sou tão jovem. Já não sou tão jovem. Ainda falta tempo. O que eu fiz esse tempo todo? Melhor morrer assim do que adoecer e sofrer. Tenho pavor de adoecer. Não, isso não vai acontecer. Melhor dormir de novo e acordar morta. Ninguém vai se lembrar de mim. Ninguém! Quem eu fui ? Ahhh eu me diverti. Mas se eu tivesse tido um filho pelo menos. Dois, talvez, e tivesse amado, agora teria alguém pra cuidar de mim. Eu quero que alguém cuide de mm. Cansei da solidão. Cansei  de ser depósito de um prazer esquecido. Uma fuga. Não quero fugir mais. Onde foi que eu enlouqueci e não percebi? Quem sobrou dessa batalha toda?

(tenta ligar mais uma vez, telefone ocupado)

Atende! Atende! Atente!  Grita!

(está quase toda molhada, o espaço alagado. Há água por todos os cantos compondo quase uma piscina. Olha a água, vê esperança! Esquece o frio, brinca com a água como uma criança)

Sede! (bebe a  água , acalma-se um pouco)
Sede!
Sede!

Surge sua criança, inconsequente, impulsiva. Brinca, brinca , brinca...e esquece.  MC²

Nenhum comentário: