sábado, 23 de maio de 2009

CRÍTICA SOBRE O NEKROPOLIS - ROGÉRIO GRUARAPIRAN

Crítica Nekrópolis
por Rogério Guarapiran

Necrópole é a antiga cidade dos mortos, campos de sepulturas que fundaram os grandes centros de civilização da antiguidade. O afastamento histórico do convívio mais orgânico com nossos mortos enfraqueceu a consciência de memória cultural remota e nossa capacidade de resistir prontamente ao julgo arbitrário e autoritário de formações cristalizadas.
O eixo central da criação colaborativa entre aprendizes e mestres da F10 da ELT com a peça “Nekrópolis” toma como centro das discussões um possível “ato extremado”, de intervenção política, como busca estética de contestação aos poderes estabelecidos. Trabalho musical de ficção crítica que coloca em processo a reflexão sobre as contradições sócio-políticas da história do Brasil recente e pratica a exumação de algumas mazelas de nossos vínculos imediatos de solidariedade e justiça social.
No início há uma dificuldade de compreender qual língua está sendo falada, não se entende a lógica do discurso e algumas palavras se destacam cruamente. Essa desorientação é um gesto - no primeiro momento incompreensível - para estabelecer o jogo de códigos e atitudes de um grupo terrorista denominado “estirpe”, que dá seu manifesto propositadamente confuso. No segundo momento inicia-se um julgamento - novo gesto que agora funda o fio da narrativa - que se desenrolará por toda a peça, entrecortado por músicas e flashs de cenas que contextualizam o processo. Nessa dinâmica o público é colocado como júri , integra a relação e é constantemente intimidado e solicitado a refletir meio ao embate ideológico dirigido pelos advogados de acusação e defesa. As músicas têm função de interrupções do fluxo dramático: comentam, antecipam, contradizem e pontuam momentos críticos; são encenadas com uma coreografia que tenta formalizar essa multifunção. A descontinuidade da narrativa exige uma versatilidade na configuração espacial, e para tanto utiliza-se palco e platéia com recursos econômicos de cenário: quase tudo são cadeiras que compõe o espaço. Os blackouts também contribuem para os cortes e mudanças de planos.
A montagem compreende várias camadas dramatúrgicas: o texto, enredo (destino do grupo terrorista dentro do julgamento), música, coreografia, etc; revelam conflitos latentes de correspondências entre as atitudes e intenções de cada elemento. A esquemática dominante da instauração do julgamento traz uma série de limitações formais em contradição com o primeiro gesto de desatinar a linguagem, porque o tribunal comporta-se num jogo antagônico e elementar de juiz, júri e opinião pública que aparecem de forma idealizadas. A atriz-juiz se dirige ao público-júri numa mistura de inquérito, averiguação e argüição, em uma tentativa de síntese investigativa que sufoca as tentativas mais intempestivas de construções na fala. As propostas de embate ideológico direto entre pares antagônicos dos advogados, representantes do poder legal e os terroristas abrem um campo muito fecundo para o debate de idéias, embora não consiga avançar para uma discussão mais aprofundada.
A direção musical atinge o adensamento de uma expressão de contestação que as letras compostas pelos atores reclamam, conseguindo uníssono muito claro das vozes em coro. Porém, essa harmonização e as melodias encontram um limite contraditório desfavorável em relação à linguagem truncada e desarticulada que pretendia atender aos terroristas. Os motivos melódicos, facilmente assimiláveis em termos de encadeamento da idéia musical, não correspondem à tentativa de desarticular a lógica do discurso que inicialmente foi sugerido. A coreografia, ao tentar desarticular os gestos, provoca uma sensação de caos organizado, e assim é mais coerente com a intenção estética. Mas há momentos em que não é difícil reconhecer algumas movimentações mal acomodadas e o abarrotamento de expressões para compensar um encaixe forçado das músicas com os cortes da narrativa central do tribunal.
Atuação é o foco de um trabalho de formação de atores de uma escola e na ELT a integração do ator em todas as etapas e áreas da criação teatral ressalta uma atitude muito consciente sobre temas que tendem a deslocar a atenção mais para fora do que para dentro do palco. Em “Nekrópolis” a autonomia está em relação oportuna e conflituosa com a forma de trabalho coletivo que resultou em fundar a autonomia de elementos cênicos que se manifestam estanques e amarrados por um truque de força que é o tribunal instaurado.

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