sábado, 9 de agosto de 2008

DIA QUADRADO


Nos dias quentes de verão em São Paulo os portões de aço dos condomínios podem emperrar devido a dilatação do ferro e conseqüente falta de espaço, pois duas matérias não podem ocupar o mesmo espaço. Não muito raro, o caos da grande metrópole pode ser entendido pela mesma lógica, os corpos fogem-se ao mesmo tempo que espremem-se por um poder de atração que se não for o calor, sabe-se lá o que pode ser. Interesse em ficar aglomerado, massificado, amassado? Talvez uma pujança em reviver algum arquétipo de guerra.
Os aglomerados calorentos embotados em paletós virtuosos, geralmente cinzas, circunscrevem os mesmos espaços, percorrem os mesmos itinerários em autos blindados, espelhados pelas colunas verticais de motivo bancário, executivo quase sempre.
A mulher de uma dessas muralhas espelhadas retirou-se seguindo seu curso para outro vertical pré-fabricado, estilo financiou entrou. Era mais um dia, diferente do outro, afinal os clientes eram novos, o papel da impressão acabou, a senhora da faxina cortou os cabelos, mas a mulher habituada a sua rotina não percebeu. Apenas uma coisa a motivava fazer tudo aquilo: a vontade que acabasse aquele e todos os outros dias de trabalho. Saiu iluminada pelos espelhos do prédio que refletiam o sol ainda vivo cá fora, de cabeça baixa e com uma bolsa gigante, olhou a tarde e não teve vontade alguma, a não ser ir pra casa. Passou em uma padaria comprou pães frescos, algumas latinhas de cerveja e um Babalu. Adorava Babalu.
Seguiu pra casa a pé, teve a mesma vontade de sempre, de tirar os saltos e jogá-los no primeiro carro que parasse no semáforo, mas, como de costume se conteve. Abriu o Babalu, colocou na boca e sentiu o prazer de mascar exageradamente como uma adolescente aquela massa espessa do chicletes sabor tuti-fruti.
Cumprimentou o porteiro mesmo sabendo que a observava sempre pela câmera do elevador. Abriu a porta do lar, apanhou algumas correspondências jogadas debaixo da porta, tirou os saltos atirando-os pra qualquer canto, colocou as correspondências encima da mesa, foi a cozinha. De cá da sala, ouvia-se o barulho do abrir e fechar da geladeira, da água escorrendo pela torneira da pia em atrito com uma pilha de pratos sujos há semanas, do ssshhhhiiiku da latinha de cerveja quando abre. A mulher voltou deu um gole na cerveja, abriu a janela, espalhou-se pelo sofá tirando a roupa até ficar só de calcinha e no silêncio ficou.......................................................................................................................................por alguns instantes. De frente para uma estante observava alguns retratos, se ateve a uma foto de infância na qual brincava com amiguinhos numa piscina Regan dessas que se coloca no quintal de casa quando se mora em casa e depois de poucos dias, se não troca a água, aparecem larvas pretinhas que podem ser que se transformem em girinos, quem sabe enormes animais aquáticos. A mulher lembrou dos momentos felizes que tivera naquela piscina, reviveu a sensação da água fresca da mangueira que enchia a piscina, dos vários tipos de pega-pega, das competições de quem ficava mais tempo debaixo d’água e das broncas da mãe quando se aventuravam a subir pela fraca estrutura de tubos da piscina para saltar e ver aquela quantidade toda de água se espalhar no ar pra fora da piscina... Em meio a saudosas lembranças teve a brilhante idéia de se refrescar como na infância. Trocou de roupa rapidamente, pegou a carteira, os chinelos e saiu em disparada...
A mulher voltou com um embrulho comprido nas mãos, tirou os chinelos, desembrulhou ouvindo quase uma sinfonieta de tubos rolando pelo chão da pequena sala do apartamento, tomou o manual de instruções, abriu mais um babalu levando-o a boca, leu o manual identificando as peças. Separou-as pela forma. Levantou-se olhou os conjuntos imaginando os possíveis encaixes, pegou a lona grossa e decorada com peixinhos coloridos e outros motivos marinhos, abriu, deitou sobre ela sentido o cheiro de borracha nova, respirou fundo fechando os olhos, sorriu. Sentia seu corpo como era na infância, denso, pele macia. Depois então de um dia de banho na piscina Regan sua pele ficava vermelha, seu rosto ardia, sua fome aumentava, e depois de saciada por um pão com mortadela e suco de caju TANG acabava adormecendo na frente da televisão, o sono era quase infinito. Na infância os desejos eram facilmente satisfeitos, ter disposição para brincar, fazer pirraça, se machucar é o que se precisava pra estar feliz. Na infância o corpo não pensa apenas flui, quando cresce a cabeça manipula, enlouquece, adoece o corpo.A mulher sentia suas coxas troncudas de criança, a pele lisa. Tocou suas coxas, apertando, a textura já não era a mesma, podia sentir a pele mais flácida se espalhando pelos dedos. Com a pontas dos dedos percorreu seus quadris, virilha, barriga, apalpou os seios com força não acreditando que passara tanto tempo, subiu pelo pescoço até reconhecer seu rosto.Teve a certeza que crescera pela textura da pele ressecada e irritada de sabão em pó nas maõs, além disso cheirava a água sanitária. Lembrou que suas calcinhas estavam de molho no mesmo produto há mais de uma semana. Fora uma breve lembrança insuficiente para tirar-lhe daquele transe. Respirou fundo, abriu os olhos, observou algumas bolores que começavam a se formar no canto direito da sala. Levantou-se num ligeiro suspiro arrepio medroso de não saber quem era. Por alguns instantes tudo apagara da sua memória, não sabia se estava ali, não sabia se habitava aquele e corpo, e quase guturalmente, perguntava-se: “Será que eu sou eu mesma”. Um lapso, rápido logo voltou a si. Não sabia como, mas de repente sentia-se tomada por essa condição entorpecente, notava que algo acontecia e nunca era a mesma. Esses momentos sempre aconteceram na sua vida, até na infância. No entanto, fazia tempo que não tinha essa experiência. Achou uma boa hora para abrir uma cerveja.
Os tempos, as horas, passagens mórbidas ou fascinantes, a cerveja no congelador, as lembranças escapando pelos poros magnetizando o ambiente. Uma caixa, uma mente, um congelador. A álcool refrescando a goela e a cuca quente.
Dessa vez, sem precisar ler as instruções a mulher ia encaixando as barras de ferro facilmente, aos poucos a forma retangular da piscina aparecia. Em alguns minutos estava pronta, a piscina compondo uma decoração especial no centro da sala do pequeno apartamento. Depois de pronta, um suspiro, a obra estava quase completa. Ansiosa a mulher correu até a área de serviço e percebeu que precisava de uma mangueira, com o único balde que tinha demoraria muito tempo para enchê-la. Procurou o zelador que curiosamente queria saber o que faria como uma mangueira, mas a mulher segredou o assunto da piscina dizendo que estava fazendo uma faxina na cozinha. O argumento era justo mas não convenceu o moço, recomendando que o desperdício de água seria notável na conta do condomínio e que pagaria por isso. A mulher sorridente concordou, apanhou os metros de mangueira vermelha com esforço, colocou-os no elevador, subiu para o décimo terceiro andar. Chegou em casa esbaforida, conectou a mangueira puxando a ponta até a sala. No meio do caminho foi surpreendida por vários barulhos, no seu desespero a borracha saiu dando rasteira nos objetos mais leves assim como utensílios de limpeza, uma fruteira com algumas cebolas, e um vaso de louça chinesa que ganhara da sua mãe falecida. Parou numa pausa breve, observou os estragos, olhou tristemente para a louça quebrada, voltou para a piscina colocando o bico da mangueira dentro dela. Correu atropelando os cacos, as cebolas. Sentiu uma forte emoção ao ligar a torneira e ouvir o barulho da água percorrendo a borracha. Finalmente a água escorria enchendo a piscina. A mulher entrou no quadrado azul colorido tirando a roupa, sentou-se tomando a borracha e espremendo um jato d’água no corpo. Sentia-se aliviada apesar de ainda sentir o chão duro sob as nádegas. Resolveu sair e voltar outra hora, quando pudesse, de fato, sentir-se flutuante. Molhada foi até o banheiro, enxugou-se numa toalha branca encardida. Vestiu calcinha limpa atirou-se na cama como se estivesse ensaiando um pulo virtuoso na sua nova piscina. Aí ficou com a cabeça afundada no travesseiro. MC²

Nenhum comentário: